quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (VIII)

A Constituição Económica de 1992
A Constituição de 1992 representa um momento de ruptura com a ordem constitucional vigente até 1990, tanto na esfera política como na esfera económica. A Constituição de 1992 “consagra um Estado de Direito Democrático com um vasto catálogo de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado, um sistema de governo de equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania, um poder judicial forte e independente, um poder local cujos titulares dos órgãos são eleitos pelas comunidades e perante elas responsabilizados, uma Administração Pública ao serviço dos cidadãos e concebida como instrumento do desenvolvimento e um sistema de garantia de defesa da Constituição característico de um regime de democracia pluralista”.
Ao definir que o Estado deve garantir as condições de realização da democracia económica, assegurando “a igualdade de condições de estabelecimento, realização e concorrência de todos os agentes económicos, privados e públicos”, de uma só vez, caem por terra os princípios fundamentais da Constituição económica de 1980, quais sejam: (1) o controle pelo Estado dos sectores básicos da economia, (2) a propriedade do Estado como sector dominante da economia, e (3) a reserva pública de sectores da economia nacional. O dispositivo constitucional citado diz em substância que todos os agentes económicos se encontram nas mesmas condições, ou seja, que a nenhum é conferido qualquer poder ou prerrogativa especial na esfera económica.
Ora, isto é exactamente o oposto do que estatuía a Constituição de 1980, que atribuía à propriedade do Estado o papel dominante na economia, em detrimento da propriedade privada. Estando todos os agentes económicos em pé de igualdade, então não pode o Estado arrogar-se o direito de atribuir aos agentes do sector público o domínio sobre nenhum sector da economia, nem pode limitar o acesso dos agentes económicos privados a nenhum sector da economia.
Iniciativa privada
Com a Constituição de 1992, a iniciativa privada passa a ter dignidade idêntica à da propriedade pública, podendo exercer-se em qualquer ramo ou sector da economia nacional, sem discriminação. Acaba, assim, a delimitação de sectores imposta em 1980, e a discriminação até então vigente em relação à propriedade e iniciativa privada. Ou seja, acaba definitivamente o monopólio do Estado sobre “… as fontes de energia, os meios básicos de produção industrial, os meios de informação e comunicação, os bancos e seguros e as infra-estruturas e os meios fundamentais de transporte”, no dizer da Constituição de 80.
Na ruptura com os princípios económicos da década de 80, a Constituição de 1992 reconhece o papel da iniciativa privada que deixa de ser relegado para um papel marginal na economia. O texto de 1992 confere dignidade constitucional à iniciativa privada, reconhecendo explicitamente a todos “o direito à livre iniciativa privada” e o direito de “criar empresas e cooperativas”.
A revisão de 1999 exprime com mais clareza a liberdade da iniciativa privada: “A iniciativa privada exerce-se livremente no quadro definido pela Constituição e pela lei”.
Direito à propriedade
A Constituição de 1992 garante expressamente a todos “o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte.” Ainda em defesa da propriedade privada, a Constituição de 1992 reconhece a possibilidade de requisição e expropriação por utilidade pública, mas apenas com base na lei e mediante justa indemnização.
Abertura da economia
O texto de 1992 afasta implicitamente o princípio de 1980 de criação de uma “economia nacional independente”. Pelo contrário, aponta em sentido inverso, impondo ao Estado a obrigação constitucional de apoiar os agentes económicos nacionais na sua relação com o resto do mundo, e de modo especial os agentes e actividades que contribuam para a inserção de Cabo Verde na economia mundial. Esta perspectiva contrasta frontalmente com a ideia até então prevalecente de desenvolvimento “virado para dentro”. Na realidade, a abertura ao exterior passa a ser uma das ideias força do modelo de economia dos anos noventa.
A Constituição de 1992 dá um passo adicional na abertura do país ao exterior, ao assumir perante o investimento externo uma postura bem mais positiva do que a Constituição anterior. O investimento externo é bemvindo e, mais do que isso, o Estado passa a incentivar e apoiar o investimento externo. O Estado não se limita a “tolerar” o investimento externo, mas tem agora uma atitude pró-activa; atrai o investimento externo, cria incentivos e apoia a acção dos investidores externos. Trata-se de uma mudança muito importante que teve reflexos na acção governativa e na economia do país a partir de meados dos anos 90, até hoje.
Sistema financeiro
Os sistemas financeiros, fiscal e o Orçamento fazem a sua entrada no texto constitucional, já que a Constituição de 1980 não tratou estas matérias.
A Constituição atribui ao sistema financeiro o papel de “formação, captação e aplicação de poupanças” em favor do desenvolvimento económico.
Constitucionalizam-se as funções principais do Banco Central, o qual detém o exclusivo da emissão de moeda, e “colabora na definição e execução das políticas monetária, financeira e cambial”. Nota-se aqui uma primeira preocupação em definir a posição do Banco Central em matérias de política económica, concedendo-lhe um nível de autonomia, que se deve considerar ainda relativamente restrito. O Banco Central colabora na definição e execução das políticas monetária, financeira e cambial.
O Banco Central ganhou maior autonomia com a revisão de 1999.
De acordo com o texto vigente, o Banco Central continua a colaborar na definição das políticas monetária e cambial, mas passa a executá-las de forma autónoma. Ou seja, a execução das políticas monetária e cambial é retirada da esfera governamental, passando para a responsabilidade exclusiva do Banco Central.
Sistema fiscal
No sistema fiscal assiste-se a uma ruptura com o modo de encarar a questão fiscal até 1990. Retira-se ao poder executivo qualquer veleidade de legislar nas questões essenciais relativas aos impostos, tal como acontecia anteriormente, e definem-se alguns dos princípios básicos nesta maté ria. Os objectivos do sistema fiscal são, no dizer do texto de 1992, (1) a satisfação das necessidades financeiras do Estado, (2) a realização dos objectivos da política económica e social do Estado, e (3) a justa repartição dos rendimentos e da riqueza. Diz a Constituição que “os impostos só podem ser criados por lei, a qual deve determinar os elementos essências do imposto, especificamente, a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”. Para reforçar a importância dos impostos, a Constituição de 1992 estabelece a exclusividade e absoluta responsabilidade da Assembleia Nacional nessa matéria, o que significa que em circunstância alguma pode o executivo legislar sobre os elementos essenciais dos impostos, muito menos criar impostos. Rompe-se assim com a prática anterior, consagrada na Constituição de 1980, que permitia à Assembleia conceder autorização legislativa ao Governo para legislar sobre impostos. O texto de 1992 consagra o direito dos cidadãos a “recusar o pagamento de impostos que não tenham sido criados nos termos constitucionais ou cuja liquidação e cobrança seja feita fora dos termos da lei”. Consagra ainda a não retroactividade da lei fiscal, e impede o aumento das taxas dos impostos ou alargamento da base de incidência destes num mesmo exercício económico. Em finais do ano de 1992, pela Lei n.º 37/IV/92, veio a ser aprovado pela Assembleia Nacional o Código Geral Tributário, onde de uma forma mais ampla e generalizada se estatuíram todos os princípios gerais tributários, salientando-se a definição programática da reforma da tributação do rendimento.
Estabelece-se que o imposto sobre o rendimento pessoal visará a diminuição das desigualdades e será único e progressivo tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar. Por outro lado, a tributação das empresas incidirá fundamentalmente sobre o rendimento real. O modelo constitucionalmente consagrado é, assim, o da tributação única, ao invés do sistema parcelar de imposição que vigorava até então. Quanto às empresas, a determinação da matéria colectável deveria ser efectuada através dos elementos contabilisticamente declarados, afastando-se à partida a tributação presumida, só usada em algumas circunstâncias específicas.
Planeamento
O texto de 1992 exige ao Estado que promova a participação dos grupos sociais e económicos na elaboração e avaliação dos planos de desenvolvimento. Diz no artigo 92º, que “O desenvolvimento económico e social de Cabo Verde é orientado por um plano nacional de carácter indicativo …” e atribui ao Governo a responsabilidade de elaboração do Plano e das Grandes Opções do Plano para aprovação da Assembleia Nacional.
Embora continue a Constituição a exigir a elaboração de um Plano Nacional de Desenvolvimento, o Plano deixa de ser imperativo para o sector público, como era exigido na Constituição de 80, para ser meramente indicativo para todos os agentes económicos. Esta posição é mais próxima dos princípios fundamentais da liberdade económica, e sobretudo leva em conta a realidade do país em termos de capacidade de financiamento do investimento público. A revisão constitucional de 1999 veio eliminar esta ambiguidade, dando o toque final ao liberalismo económico da Constituição de 1992 ao tornar facultativa a elaboração do Plano: “O desenvolvimento económico e social pode ser orientado por planos de médio prazo e de carácter indicativo”.
Regulação
Impõe a revisão constitucional de 1999 a obrigatoriedade do Estado assegurar a regulação do mercado e da actividade económica.
Contrariamente à ficção sobre o significado do liberalismo económico, não há contradição entre a liberdade económica, a predominância do mercado e sua regulação pelo Estado. A economia de mercado fundamenta-se na liberdade de troca e nos consequentes mecanismos institucionais que garantem a confiança nas relações contratuais, explícitas ou implícitas, como sejam: direitos de propriedade, regulação económica, concorrência e primado da lei. O quadro institucional e as instituições, garantidos pelo Estado, são portanto fundamentais para um bom ambiente de negócios, para a economia do mercado e para o crescimento económico. Ao contrário do que muitas vezes se faz circular, a economia de mercado e liberal não dispensa o poder do Estado, pois compete ao Estado a função de assegurar a governação das relações contratuais e garantir os arranjos institucionais e políticos que suportam a confiança entre os agentes económicos. A democracia constitucional e liberal limita sim o poder do Estado e faz com que o poder político e o seu exercício se confinam ao quadro constitucional e reduz o intervencionismo na economia. É esta a opção que a Constituição de 1992, revista em 1999, consagra.

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