terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (VII)

Novo paradigma
A década de 90 marca o “advento da democracia, da globalização e do capitalismo global”, com a reunificação da Alemanha (1990), a adopção de regimes democráticos nos países do Pacto de Varsóvia que se seguiu ao colapso da União Soviética, o fim do Apartheid (1990); com a mobilidade de capitais e do comércio internacional, à escala mundial, orientada para novos espaços (leste europeu) antes “fechados” e a emergência da plataforma da Internet e da Web a partir de meados dos anos 90, o que permitiu o “desenvolvimento de uma “bolha” especulativa em todo o mundo, com uma circulação financeira jamais vista30”, o que permitiu que o mercado de divisas, a nível mundial, seja hoje 10 vezes superior ao da economia real.
Samuel Huntington (1994), cientista político americano, chamou a esse grandioso movimento contagiante de democratização, a “terceira vaga da democracia”. Os elementos mais salientes que enformavam o momento, são o fim das utopias totalitárias, designadamente do comunismo, e o reconhecimento da universalidade dos direitos humanos e da democracia.
Em inícios da década de 90, muitos economistas que se dedicam à problemática do desenvolvimento estavam convictos que uma utilização mais eficiente dos recursos despoletaria o crescimento económico. Essa maior eficiência requereria a redução do papel do Estado na economia. Era também convicção que as reformas deveriam ser rápidas com argumentos a favor do “big bang” e do “shock treatment” a ganharem proeminência comparativamente às estratégias de reformas gradualistas. É nesse contexto que a Federação Russa, os países da Europa do Leste e da Ásia Central reconstroem as suas economias na base dos prinípios do mercado, da liberalização do comércio e da privatização; a China continua as reformas iniciadas em 1978 liberalizando e abrindo mais a sua economia; a India acelera a liberalização iniciada na década de 80; países da América Latina como o Brasil, a Argentina e a Bolívia introduzem programas radicais de reforma económica visando reduzir a hiper-inflação; vários países da África adoptam programas de reestruturação do sector público, privatização e liberalização comércio (Banco Mundial, Economic Growth in the 1990s).
Apesar de países como a China e a India, países do Sudeste Asiático e alguns países da África terem crescido de forma rápida, uma das lições da década de 90, segundo o Banco Mundial, é que as políticas focalizadas nas reformas dessa década conduzem a um melhor uso da capacidade produtiva existente mas não proporcionam suficientes incentivos para a expansão dessa capacidade. Sublinha assim, a necessidade de, para além do uso eficiente dos recursos, desenvolverem-se transformações estruturais, diversificar a produção, proporcionar um ambiente favorável e incentivos à tomada de risco por parte de investidores, corrigir as falhas do mercado e de funcionamento do Estado e mudar políticas públicas e instituições, num processo que também exige transformações sociais (Banco Mundial, Economic Growth in the 1990s).
O papel das instituições para a prosperidade da economia ganha particular importância. Protecção de direitos de propriedade, adequadas estruturas de regulação, qualidade e independência do sistema judicial e capacidade da administração pública, são tidos como pré-condições essenciais e determinantes para o crescimento económico e sua sustentabilidade, embora não seja propriamente uma “lição” específica da década de 90. Sob diferentes perspectivas, Adam Smith, Karl Marx e Max Weber, sublinharam o papel das instituições no desenvolvimento da economia de mercado e na formação da sociedade capitalista (Banco Mundial, Economic Growth in the 1990s).
A abordagem do papel do Estado na economia sofre alterações relativamente à ortodoxia neoclássica: (1) a intervenção do Estado deve ser complementar e “amiga do mercado” (market friendly), no sentido em que o Estado deixa o mercado funcionar a não ser que a vantagem da intervenção seja claramente melhor; fiscaliza e harmomiza submetendo a sua intervenção à disciplina dos mercados internacionais e domésticos; e intervém de forma simples, transparente e sujeito a regras; (2) intervenções selectivas do Estado alterando os incentivos do mercado, podem beneficiar o seu funcionamento influenciando positivamente o comportamento dos agentes económicos32; (3) o Estado é central para o desenvolvimento económico e social, ressaltando a importância da qualidade e da eficácia da governação.
A década de 90 foi marcada pela redução da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) depois de a mesma ter duplicado entre 1969 e 1991. Apesar do elevado volume de APD34, muitos países receptores viram baixar o seu PIB per capita entre 1980 e 2000. Desde 1980, o apoio dos EUA ao desenvolvimento atingiu 167 bilhões de dólares, beneficiando 156 países. Desses, noventa e sete baixaram o seu PIB per capita, ajustado da inflação, de $1.076 em 1980 para $994 em 2000.
A tese do Modelo Harrod-Domar de que o crescimento económico é proporcional ao volume de investimento em capital (máquinas e infraestruturas) orientou a APD através de “aid to investment to growth”. Um modelo assente num grande erro, como afirma William Easterly. O investimento em capital físico e sua acumulação pode ser considerado uma condição necessária para o crescimento económico, mas não é uma condição suficiente e é aqui que os países falham. Os múltiplos factores que afectam o crescimento (tecnologia, capital humano e capital organizacional) fazem com que a relação entre o crescimento económico e o investimento seja instável e se possa perder. Incentivos e expectativas são fundamentais para o crescimento económico. As pessoas respondem a incentivos e ge rem expectativas (Easterly 2001). Para isso precisam de um ambiente político, económico, social e organizacional favorável que não se compadece com a corrupção, sérios constrangimentos à liberdade e à democracia, fragilidade das instituições e dificuldades em fazer funcionar a autoridade do Estado, tensões sessionistas e conflitos violentos, situações que têm afectado negativamente a democracia e o desenvolvimento na África Sub-sariana.
Estudos recentes do Banco Mundial (2006)confirmam que o capital intangível (capital humano, as habilidades e o conhecimento incorporados na força de trabalho, o capital social, a qualidade das instituições) é preponderante na criação da riqueza das nações; daí é que advém a maior parte da riqueza de um país. Esses estudos demonstram que, quanto mais desenvolvidas são as economias, menos elas dependem dos recursos naturais e mais utilizam os chamados capitais intangíveis. A importância relativa do capital intangível na criação da riqueza é de 59% nos países de baixo rendimento, 68% nos países de rendimento médio e 80% nos países de elevado rendimento (OCDE).
Por outro lado, os recursos naturais têm uma maior importância relativa nos países de baixo rendimento (26%) do que nos de elevado rendimento (2%).
A década de 90 marcou também um grande incremento no Investimento Directo Estrangeiro (IDE), dirigido essencialmente aos países desenvolvidos (EUA, Europa e Japão). A introdução do euro, eliminando as volatilidades e os riscos associados à taxa de câmbio, contribuiu significativamente para acentuar esse incremento. Assistiu-se a “uma nítida aceleração do processo de integração dos mercados financeiros em virtude da globalização mas também da implementação de um enquadramento regulamentar comum e da passagem ao euro. Mais de 50 países ligaram a sua moeda ao euro através, entre outros, de um regime cambial de flutuação controlada ou de tipo “currency board”. Esses países situam-se predominantemente na Europa e na África, e são motivados por laços comerciais, financeiros ou pelo processo de adesão à UE”.
Cabo Verde soube acompanhar a nova dinâmica mundial que a década de 90 trouxe: a 13 de Janeiro de 1991 abraçou a democracia constitucional liberal, configurada pela Constituição de 1992; assumiu a liberdade e a dignidade da pessoa humana como um valor inalienável; liberalizou a economia e implantou uma economia de mercado; criou as condições e um ambiente favorável à atracção do investimento externo; assumiu a inserção na economia mundial como uma estratégia de desenvolvimento; configurou um sector público assente em valores democráticos e na descentralização do poder; soube, a tempo, em 1998, entrar na nova dinâmica proporcionada pela moeda única europeia ao ancorar a moeda caboverdiana ao euro, através do Acordo de Cooperação Cambial celebrado com Portugal, em 1998 e confirmado pela Decisão do Conselho da União Europeia de 21 de Dezembro de 1998.
O projecto político do MpD – Movimento para a Democracia, partido que ganhou as primeiras eleições multipartidárias e governou o país de 1991 ao ano 2000, aprovado em Novembro de 1990, foi a expressão de um novo paradigma e do rompimento com o regime político e modelo económico vigente durante as décadas de 70 e 80. Alguns princípios fundamentais foram definidos: (1) a finalidade da sociedade consiste no livre desenvolvimento da personalidade de cada ser humano, devendo este sobrepor-se aos demais como último e absoluto; (2) a valorização da vida e da dignidade do indivíduo, sobrepondo-se ao próprio Estado; (3) o direito à diferença e à sua expressão como valores fundamentais; (4) a oposição às tentativas de massificação de indivíduos e de padronização de comportamentos políticos; (5) a valorização do esforço, do mérito, da iniciativa, da criatividade e do risco como condições indispensáveis para o desenvolvimento; (6) a democracia como um valor essencial ao desenvolvimento e a sua realização nas vertentes política, económica, social e cultural; (7) a constituição de um Estado em permanente diálogo e concertação com as comunidades, os operadores e as forças representativas da sociedade; (8) a liberdade económica (nenhum sector deve estar vedado à iniciativa privada); (9) a protecção e a preservação do ambiente como indispensável ao desenvolvimento; (10) o reconhecimento das especificidades das populações das diferentes ilhas e a necessidade de um novo relacionamento institucional que salvaguardem e fomentem a expressão dessas especificidades.
A mudança de paradigma, a partir de 1991, assentou na consideração da Liberdade como um valor, no sentido e alcance que Amartya Sen define na sua obra “Development as Freedom”. A liberdade política, a liberdade económica, a transparência, as oportunidades e protecção sociais, são, segundo Amartya Sen, os pilares que condicionam fortemente o desenvolvimento. Liberdade política, como a possibilidade de o povo determinar, regularmente, sobre quem o governa e com base em que princípios; possibilidade de escolher entre diferentes partidos; liberdade de expressão e de manifestação; acesso a uma imprensa livre e pluralista. Liberdade económica, como a possibilidade e oportunidade de escolha entre consumir, investir, poupar e participar nas trocas e na produção, num ambiente regulado, com concorrência e transparência. Oportunidades sociais no acesso à educação e à saúde, duas áreas fundamentais ao crescimento e ao desenvolvimento económico. Possibilidade de o indivíduo ter condições de ajudar-se a si próprio, progredir socialmente e não ser um mero recipiente da assistência. Possibilidade de o indivíduo ter protecção social de forma a evitar que sejam relegados à situação de objectos ou miseráveis.
O III PND 1992-1995, dizia que “um desenvolvimento económico sem o investimento humano não poderá vingar. O objectivo principal do desenvolvimento humano é de alargar o leque de oportunidades oferecidas às populações e que permitem tornar o desenvolvimento mais democrático e mais participativo”.
Para tal, “três condições devem ser reunidas: viver muito mais tempo e em boa saúde; adquirir um “saber”; ter acesso aos recursos necessários para poder tirar proveito de um nível de vida razoável”. Para além disso, o conceito de desenvolvimento humano abarca também “noções tão capitais como a liberdade política, económica e social, e importantes como a criatividade, a produtividade, o respeito por si e a garantia dos direitos fundamentais”. O PND 1997/2000 acrescenta os conceitos de desenvolvimento sustentado e sustentável, “um modelo de crescimento que se possa auto-alimentar, num quadro de desenvolvimento permanente e sem limite” e que nega todo o desenvolvimento que se baseie no esgotamento dos recursos e que empobreça as gerações vindouras.

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