segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (VI)

Uma economia assistencial e rentista
O perfil de economia rentista e de Estado assistencial que existia desde a época colonial foi aprofundado e enquadrado por um regime político subordinador e cerceador da autonomia da sociedade civil e por um sistema económico que subalternizava a iniciativa privada e desconfiava do investimento estrangeiro. A natureza de financiamento da economia nos inícios dos anos 70 (antes da independência) e na década de 80, era idêntica: subsídios não reembolsáveis, donativos, empréstimos concessionais e remessas de emigrantes. Esta natureza de financiamento de programas de assistência evoluiu para um misto de assistência e desenvolvimento que ainda perdura até hoje com uma importante expressão a nível do Orçamento do Estado e da Balança de Pagamentos.
A não inflexão das tendências da última fase do período colonial e do aprofundamento do assistencialismo e da economia rentista, confirmaram e moldaram uma economia desligada da produção e um Estado que se posiciona e se desenvolve como um agente distribuidor de recursos captados do exterior sob a forma de renda. As principais características da economia cabo-verdiana ainda prevalecem: défice comercial elevado (em média cerca de 40% do PIB); serviços líquidos normalmente positivos mas representando uma pequena fracção desse défice; transferências externas (remessas de emigrantes e ajuda pública ao desenvolvimento) financiando cerca de 2/3 do défice comercial (até 1990, essa cobertura era maior). As transferências contribuem para um PNB e um rendimento disponível mais elevados do que seria assegurado pela produção local da população residente. Funcionam como uma “renda” de que a economia beneficia e que lhe permite o recurso crescente à importação de bens, sem que haja um crescimento correspondente da produção interna. O consumo, particularmente o privado, tem sido o principal responsável pelo crescimento da economia cabo-verdiana. Cabo Verde consome mais do que produz e esta é uma realidade que já vem de várias décadas. Segundo o estudo da SaeR, coordenada pelo Professor Ernâni Lopes, “a variação do consumo, dada a fraqueza da actividade produtiva local, aumenta a solicitação da produção exterior e, por conseguinte, das actividades de comércio e serviços ligadas à importação e comercialização local dos produtos, o que implica que sejam exactamente o consumo (lado da procura) e aqueles dois sectores (lado da produção) os principais responsáveis pelo ritmo de crescimento da economia cabo-verdiana”.
Segundo ainda o estudo da SaeR, o modelo rentista da economia caboverdiana defronta-se com dois tipos de limites importantes relacionados com as fontes de “rendas” do exterior e limites internos do próprio modelo: (1) tendência para a redução no fluxo de emigração, nas remessas de emigrantes e na ajuda ao desenvolvimento, com efeitos sobre o rendimento disponível das famílias e sobre o financiamento do défice público; (2) a quebra das transferências amplia as dificuldades económicas do país por falta de uma base amortecedora interna susceptível de compensar as dificuldades originadas nas relações com o exterior.
Esta é uma realidade que se mantém até ao dia de hoje, apesar de se ter vindo a registar desde a década de noventa, mudanças estruturais na economia com o aumento dos serviços líquidos e o surgimento e expansão do investimento directo estrangeiro, mas numa expressão ainda muito inferior ao peso das transferências. Foi o reconhecimento dessa realidade de dependência de rendas precárias e de elevada vulnerabilidade face aos choques externos que levou à consideração, principalmente a partir de 1995, de que era necessário modificar o modelo de inserção de Cabo Verde na economia internacional.
Uma economia iliberal
Em rigor não se pode falar em liberalização ou abertura económica em finais da década de 80, mais precisamente em 1988, como se pretende algumas vezes apontar. As medidas de flexibilização introduzidas pela revisão constitucional de Dezembro de 1988 foram ambíguas e continuaram essencialmente focalizadas no papel predominante atribuído ao Estado no domínio económico e empresarial.
Quer o quadro constitucional, legal e institucional, quer a praxis governativa, eram de cariz iliberal, até ao final da vigência do regime de partido único: (1) domínio de empresas públicas em praticamente todos os sectores de actividade económica; (2) lei de delimitação de sectores e reserva pública impedindo ou restringindo fortemente a liberdade de acesso aos mercados; (3) fortes restrições à liberdade do comércio através de plafonds de importação, de crédito e cambial; ausência do primado da lei, subalternização da propriedade privada e fraqueza de mecanismos da sua defesa e protecção, não propiciando segurança jurídica e económica aos agentes económicos; (4) ausência de concorrência e de regras de funcionamento dos mercados; (5) total poder de discricionaridade e arbítrio do poder político e da administração do Estado sem sujeição a mecanismos de fiscalização, de “checks and balances” e de “accountability”.
Todos estes factores que resultavam da estrutura do regime político e do seu sistema económico e institucional, obviamente não facultavam condições para a confiança aos investidores e agentes económicos, aumentavam a incerteza no cálculo económico e aumentavam extraordinariamente o risco do país. O ambiente geral não era por isso propício ao empreendedorismo e à atracção do investimento privado, fosse ele nacional ou estrangeiro. Não seriam, pois, as tímidas alterações constitucionais e legais de 1988-89 que poderão conduzir à classificação de abertura económica ou de processo de liberalização quando toda a estrutura de base era manifestamente iliberal.
Os fundamentos de uma economia de mercado – a liberdade, a propriedade privada, o primado da lei, a meritocracia, a regulação, a concorrência e a confiança – para além de estarem ausentes eram negados de jure e de facto.
As consequências sobre o sistema económico são evidentes: debilidade do tecido empresarial e estrangulamentos institucionais ao crescimento económico e ao desenvolvimento provocados por um Estado predatório e patrimonialista. Os efeitos do partido-Estado sobre o sistema económico, social, educacional, cultural, burocrático e da comunicação social foram fortes, estruturantes e prolongados e fazem-se sentir, apesar da mudança de paradigma em 1991, até hoje.

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