segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (II)

A Constituição Económica de 1980
A Constituição de 1980 adopta o conceito de “economia nacional independente”, em voga nos anos 60 e 70 e assume-o como um dos deveres do Estado, numa pequena economia insular e numa cultura aberta ao mundo como Cabo Verde. A realidade é que nem Cabo Verde tinha condições para ambicionar ser um país de desenvolvimento auto-centrado e nem seria essa a via mais correcta. No começo dos anos 80 “já eram conhecidos os impasses a que tinham conduzido as diferentes estratégias introvertidas
nos países em desenvolvimento, além de que se viviam já os debates sobre a crise do paradigma do desenvolvimento e sobre as novas posições introduzidas pelos economistas neoliberais”. Vários estudos do Banco Mundial e de outras instituições mostram que “países mais integrados na economia mundial cresceram mais do que os não globalizados”.
O Estado deve promover o desenvolvimento económico e controlar os sectores básicos da economia, como fundamento do progresso social, assim ditava a alínea e) do artigo 10º da Constituição de 1980. Para além disso, dispunha o nº 2 do artigo 11º da Constituição que, “São propriedade do Estado o subsolo, as águas, as riquezas minerais, as principais fontes de energia, os meios básicos de produção industrial, os meios de informação e comunicação, os bancos, os seguros, as infra-estruturas e os meios fundamentais de transporte”. Dizia ainda a Constituição que o “Estado controla o comércio externo e detém o monopólio das operações com ouro e divisas”. Estes princípios consagrados na Constituição dizem tudo sobre a estatização da economia,sendo a propriedade estatal constitucionalmente declarada como sector dominante da economia, em contraponto com a propriedade privada e a propriedade cooperativa.
A opção por uma economia estatizada e planificada, inspirada no modelo soviético, não podia ser mais clara, apesar de algumas incongruências que resultavam da sua aplicação à realidade de um país como Cabo Verde, como é o caso de o Estado reservar “meios básicos de produção industrial” numa economia em que a indústria representava cerca de 5% do PIB e o dever de construir uma “economia nacional independente” num pequeno estado insular, marcado pela diáspora, de formação e aspiração cosmopolita e que desempenhou uma função histórica de prestação de serviços.
A praxis governativa
O 1º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 1982-1985 traduzia bem os princípios consagrados na Constituição de 80. Dispunha que “(…) a nossa economia exige uma planificação rigorosa, orientada segundo o princípio do centralismo democrático. (…) o Estado terá que desempenhar um papel determinante em todos os domínios (…) o sector produtivo estatal ocupará uma posição posição dominante na economia (…) para assegurar o desenvolvimento económico na via dos objectivos programáticos do Partido”. Para isso, “(…) basta que o Estado controle os sectores básicos e as variáveis económicas estratégicas.”
Praticamente todas as esferas de actividade económica foram dominadas pelo Estado: da agricultura, ao comércio de importação e a grosso, nalguns casos o comércio a retalho, passando pela indústria ligeira, a energia, a pesca, os transportes e comunicações, o sistema financeiro, a prestação de serviços diversos, a imprensa, a construção, hotelaria, etc.
No sector financeiro, o Estado tinha o exclusivo de toda a actividade bancária e seguradora. O sistema mono bancário permaneceu até 1994. O Estado, através do Banco de Cabo Verde assumia em exclusivo as funções de banco central e de banca comercial, já que a Caixa Económica não podia ser, com propriedade, considerada como um banco. O mesmo figurino vigorou para o sector segurador até 1991-92.
No sector da energia, a criação da Electra, a partir da Empresa de Electricidade e Água do Mindelo e da Central da Praia, veio consagrar o monopólio da produção e distribuição de electricidade pelo Estado. Mas, em contrapartida, no sector da comercialização de combustíveis, o Estado esteve sempre em “minoria”, já que este ramo de actividade foi sempre dominado pela Shell, empresa estrangeira. A criação da Enacol em 1981-82 veio consagrar a presença do Estado neste ramo estratégico da economia.
No sector de transportes e comunicações, o Estado manteve domínio total sobre os correios, telecomunicações, transportes aéreos, e uma presença dominante no transporte marítimo de longo curso, ainda que neste caso, bem como no transporte marítimo de cabotagem, o sector privado estivesse presente.
No que concerne à imprensa, o Estado manteve o exclusivo das actividades de radiodifusão, televisão, agência noticiosa e imprensa escrita.
Em 1986, através da Lei nº 10/86, o Estado reafirmou o seu exclusivo sobre essas áreas, e sobre outros meios de informação e comunicação declarados por lei, deixando, porém, uma pequena janela entreaberta onde entraria o jornal Terra Nova.
No sector industrial, o Estado cumpriu a promessa implícita na Constituição.
A estratégia de desenvolvimento industrial baseou-se num forte intervencionismo do Estado e na substituição de importações, um modelo auto-centrado, esgotado a nível de vários países desde o final da década de 70. Quando as tendências da economia mundial eram para a abertura comercial e promoção das exportações, Cabo Verde optava, em coerência com o desígnio constitucional de construir uma “economia nacional independente”, por um projecto de desenvolvimento virado para dentro, para o mercado local, como bem reflectia a política de substituição das importações.
A presença do Estado fez-se sentir nas indústrias de confecções, calçado, avicultura, metalomecânica, moagem, agro indústria, tintas, reparação naval, conservação do pescado, etc.
Na agricultura, foram nacionalizadas terras de proprietários absentistas, depois repartidas pela reforma agrária; algumas dessas propriedades foram transformadas em empresas estatais (Justino Lopes). Nas pescas, o Estado criou a Pescave que tinha uma posição dominante na pesca industrial, e a Interbase, com exclusivo de armazenagem do pescado. No entanto, globalmente, tanto na agricultura como nas pescas, a iniciativa privada manteve sempre a sua predominância.
No ramo de construções, excluindo a autoconstrução, o Estado tinha uma posição dominante, não só através das empresas estatais do sector, EMEC e MAC, mas igualmente pela via do Ministério das Obras Públicas, que realizava directamente as obras do Estado através das suas direcções regionais.
O Estado manteve um forte controle do comércio externo e a grosso, ainda que o sector privado tivesse alguma margem de manobra. A legislação que regulava o sector foi publicada em 1985 (Lei nº 135/85), tendo codificado práticas anteriores a 1980, no concernente a licenciamento prévio das importações, plafonds, controle cambial, e reserva pública de certas áreas, como sejam a importação de produtos alimentares de primeira necessidade, materiais de construção e medicamentos. O Estado acabou por
intervir também no comércio de retalho de certos produtos, ainda que o essencial se tenha mantido no sector privado.
Quanto ao investimento externo, ele é meramente “tolerado” pela Constituição de 80 que diz que “o Estado pode autorizar o investimento de capital estrangeiro desde que seja útil ao desenvolvimento económico e social do país”. A possibilidade de abertura ao capital estrangeiro considerada na revisão Constitucional de 1988, ficou letra morta. Em 1990, o único investimento estrangeiro digno de nota era a Shell, empresa que actua em Cabo Verde desde o início do século vinte, e que deu continuidade às suas actividades depois da Independência e a Ceris (empresa mista).
Em finais do decénio de 80, mais precisamente nos anos 1988 e 1989, observa-se um tímido movimento de flexibilização de alguns aspectos mais restritivos do sistema económico da Constituição de 80. A revisão Constitucional de 1988 teve esse propósito específico (Lei constitucional nº 1/88 de 17 de Dezembro).
A revisão retirou os bancos e seguros da lista de propriedade exclusiva do Estado, o mesmo acontecendo com as principais fontes de energia. O monopólio do Estado sobre as operações de divisas foi igualmente retirado.
Essa revisão constitucional visava sobretudo permitir a aprovação de legislação sobre instituições financeiras internacionais, que acabou por não ter consequências práticas até meados da década de noventa.
Na sequência da revisão constitucional, foi aprovada a lei de delimitação de sectores (Lei nº 52/89 de 13 de Junho), que consagra essa tímida abertura, mantendo, porém, várias restrições à intervenção do sector privado na economia. Assim, as actividades bancária e seguradora, deixaram de ser exclusivo do Estado e matéria regulada por via constitucional, passando a ser reguladas por lei ordinária. Esta iniciativa não teve consequências até 1991 para os seguros, e 1994-95 para a banca.
Além disso, apesar da revisão constitucional ter mantido o exclusivo do Estado para os meios básicos de produção industrial, a lei de delimitação de sectores abriu a possibilidade de acesso da iniciativa privada a um conjunto de sectores, desde que em associação com pessoas colectivas públicas, mas sempre em posição que garantia a estas o controlo da empresa.
Manteve-se, assim, o estatuto de menoridade da iniciativa privada. O mesmo diploma vedou expressamente ao sector privado algumas áreas de actividade, nomeadamente, recursos hídricos, distribuição de energia eléctrica, serviços postal e rede básica de telecomunicações, exploração de portos e aeroportos, deixando em aberto a possibilidade de exercício de algumas dessas actividades ao sector privado, quando razões ponderosas de interesse publico o aconselhassem.
A planificação da economia, uma exigência constitucional, foi vertida em lei (Lei nº 52/85) e traduzida em Planos Nacionais de Desenvolvimento, que ainda hoje são produzidos, mas com carácter indicativo e facultativo.
A Lei nº 52/85 declarava, em sintonia com o imperativo constitucional, que o PND era imperativo para o sector público e orientador para o sector privado. O Programa do Partido (PAICV), citado no I PND (198285), indicava que a planificação é “orientada segundo o princípio do centralismo democrático”.
Em suma, o modelo de economia efectivamente implantado até 1990, corresponde, grosso modo, ao modelo desenhado na Constituição de 1980, ou seja, uma economia que nega o princípio da liberdade económica, estatizada, de planeamento central e regulada por instrumentos directos não económicos ao nível do abastecimento do mercado, do investimento, do emprego e da política monetária e cambial.
Em finais do decénio, nota-se uma tímida abertura em relação à iniciativa privada, nacional e estrangeira, mas sem consequências dignas de registo, na prática e muito distante de uma economia de mercado e de um quadro institucional promotor da iniciativa privada.

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